Uma nova crise implantou-se na Anatel envolvendo a troca dos Postos de Serviços de Telecomunicações (PSTs) por backhaul, dentro do projeto do governo de levar banda larga às escolas brasileiras. O Conselho Consultivo da agência constatou que o Aditivo ao Contrato de Concessão do STFC que recebeu do Conselho Diretor para análise, não confere com o que foi assinado com as concessionárias.
A constatação já resultou em um pedido de abertura de processo contra a agência por improbidade administrativa no Ministério Público Federal.
Ao comparar a documentação recebida em março para deliberação sobre a troca de metas com os termos efetivamente assinados pelas concessionárias, a conselheira Flávia Lefèvre percebeu discrepâncias. Em resumo, constatou que o que o conselho consultivo recebeu como subsídio para deliberar sobre a mudança no PGMU não é aquilo que a Anatel assinou com as empresas.
Este item trata justamente da inclusão do backhaul na lista de bens reversíveis à União. Ou seja, sem que a questão fosse avaliada pelo Conselho Consultivo, a Anatel mudou o termo aditivo, abrindo mão de que a nova rede que será implantada dentro do Programa Nacional de Banda Larga seja pública, passando assim a ser infra-estrutura privada e, por conseqüência, de uso da concessionária do STFC como bem entenderem. Pelo menos é este o entendimento da conselheira Flávia Lefèvre, que já vinha se posicionando contra a troca dos PSTs pelo backhaul da forma como isso estava sendo feito no PGMU.
Bate-boca
A interpretação tem sido rebatida pelo Ministério das Comunicações, em um bate-boca interno no Conselho Consultivo entre a advogada Flávia Lefèvre e o também advogado e conselheiro, Marcelo Bechara, representante do Minicom. Para Bechara, a omissão sobre a reversibilidade dos bens nos contratos não teria maiores danos, uma vez que o backhaul é entendido como uma rede de suporte ao STFC de acordo com o decreto n.º 6.424, de 4 de abril de 2008, que promoveu a troca da meta do PGMU. "Colocar isso no contrato seria redundante", afirmou a esta reportagem.
Para Flávia, não é tão simples assim. De fato o decreto define o backhaul como "infra-estrutura de rede de suporte do STFC para conexão em banda larga, interligando as redes de acesso ao backbone da operadora". Mas essa infra-estrutura "para conexão em banda larga" não consta na lista de bens reversíveis à União e o próprio decreto não cita a sua inclusão. O anexo nº 1 dos contratos é o documento que traz esta lista de bens reversíveis. É uma lista pequena, de seis itens.
O penúltimo item da lista cita a "infra-estrutura e equipamentos de sistemas de suporte a operação" do STFC. Já o último item fala de "outros indispensáveis à prestação do serviço". Os demais itens, bem mais específicos, não deixariam margem para a inclusão do backhaul. Mas, na opinião da conselheira, essa nova rede não se encaixa nem mesmo nas duas citações mais abrangentes, por não ser indispensável à prestação da telefonia fixa e nem estar sendo construída para serviços de voz, mas sim de dados, o que não a incluiria como "suporte ao STFC".
"Do jeito que está no contrato, sem a inclusão na lista de bens reversíveis, a rede é das empresas. É preciso entender que o decreto cria uma rede nova e não a coloca na lista dos bens reversíveis", argumenta a conselheira. "E pior: se não houver dinheiro da própria concessionária para fazer esse backhaul, ela pode usar o Fust já que a construção dessa rede é uma meta de universalização".
Omissão
Para além da briga sobre as conseqüências do que entende ser um problema jurídico na assinatura dos contratos, Flávia Lefèvre se diz indignada com a atitude da Anatel no meio dessa polêmica. Para a conselheira, a agência omitiu deliberadamente o fato. Na documentação recebida pelo Conselho Consultivo, o contrato incluía a seguinte cláusula: "Cláusula Terceira – A infra-estrutura de rede de suporte ao STFC implantada para atendimento do compromisso referenciado na cláusula quarta será qualificada destacadamente dentre os bens de infra-estrutura e equipamentos de comutação e transmissão, ficando o anexo nº 1 do contrato acrescido do item 'a.1, que passa a ter a seguinte redação: a.1) Infra-estrutura e equipamento de suporte a compromissos de universalização."
A Cláusula Quarta a que o texto se refere trazia o anexo com as cidades que passaram a ser atendidas com a expansão do backhaul. Mas o imbróglio vai ainda mais longe. De acordo com a folha de rosto da proposta de Termo Aditivo encaminhado ao Conselho Consultivo, o texto já inclui as alterações feitas após a consulta pública. Assim, o entendimento é que aquela era a proposta final da agência e que, após análise do Conselho Consultivo, nenhuma nova alteração seria feita.
Há indícios de que o contrato que chegou às mãos de Flávia Lefèvre realmente já havia passado por uma revisão após a consulta pública. No texto disponível no sistema de consultas públicas da agência reguladora, a Cláusula Terceira possuía outra redação, embora o resultado fosse o mesmo: a inclusão do backhaul na lista de bens reversíveis. "Cláusula Terceira – O anexo nº 1 do contrato de concessão fica acrescido do item 'g', que passa a ter a seguinte redação: 'g) Infra-estrutura e equipamentos de suporte aos compromissos de universalização'".
Obrigatoriedade
Novamente, a controvérsia se concentra entre o entendimento de Flávia e o do consultor jurídico do Minicom, Marcelo Bechara. Para Bechara, não havia a menor necessidade de a alteração contratual passar pela análise do Conselho Consultivo. A LGT manda que o grupo analise qualquer alteração no Plano Geral de Outorgas, no PGMU e nos programas de implantação de políticas públicas do governo, mas não faz citação explícita às mudanças contratuais. Na opinião de Bechara, o envio da alteração contratual foi uma mera liberalidade da agência e, como o documento não faz parte da lista de questões que obrigatoriamente devem passar pelo crivo do Conselho Consultivo, não há razão de ser nos protestos de que o aditivo foi alterado após a análise do conselho.
Flávia pensa diferente. Para a conselheira, a mudança do contrato faz parte do processo de alteração do PGMU e de um conjunto de ações associadas a uma política pública. Assim, o documento teria que passar pelo Conselho Consultivo e, por isso, a Anatel o enviou acertadamente. Neste caso, haveria sim um problema no fato de a agência encaminhar um documento diferente do que seria assinado pelas concessionárias. "Foi um ato de má-fé enorme porque o que mandaram para mim era uma minuta concluída após uma consulta pública, mas diferente do que foi efetivamente assinado. Estou me sentindo vítima de um estelionato. É um escândalo", protesta.
Justiça
Os dois vértices dessa briga podem chegar à Justiça. No caso do envio da documentação pela Anatel diferente do que seria assinada, Flávia já fez uma solicitação formal para que o Ministério Público Federal (MPF) avalie se cabe abertura de processo por improbidade administrativa. Já com relação às conseqüências para a sociedade de o backhaul não ser reversível ao patrimônio da União, a conselheira ainda estuda se contestará o caso na Justiça ou não.
Independentemente de quem tem razão na análise dos documentos, Flávia faz um alerta: advogados das empresas muito provavelmente estão fazendo a mesma leitura que ela. E, ao não estar explícito no contrato que o backhaul é um bem reversível, as concessionárias, no futuro, podem se aproveitar dessa lacuna para não repassar a rede à União. "Os advogados das empresas são contratados para ver esse tipo de omissão. E eles estão certos; é o trabalho deles".