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O “não-problema” e os reais desafios do governo Bolsonaro

O setor de TICs em geral, mas de telecomunicações especificamente, tem uma série de problemas que precisarão ser enfrentados e demandam a atenção do governo Jair Bolsonaro. A ingerência política nas agências reguladoras, contudo, não é o maior deles. Em reportagem da Folha de S. Paulo do último final de semana, soube-se que parte da equipe de transição está preocupada com a influência política sobre os reguladores, cogitando-se inclusive esvaziar atribuições da Anatel (exemplo citado na matéria), reduzindo-a a um órgão fiscalizador, para blindar esta suposta ingerência.

Sabe-se que para mudar as responsabilidades da Anatel é preciso mudar não apenas uma parte relevante da Lei Geral de Telecomunicações (o que só pode ser feito pelo Congresso, não por Medida Provisória), como talvez seja preciso mudar a Constituição, que prevê o órgão regulador. As regras que ai estão existem desde 1997, e sobreviveram a várias trocas de governo, sem abalos. Lula assumiu em 2003, vale lembrar, com severas críticas às agências, mas não mexeu com o funcionamento delas. Foi trocar o comando da Anatel apenas um ano depois de assumir.

Ao longo dos anos, a Anatel teve conselheiros indicados ao seu colegiado pelo presidente da República com todos os perfis possíveis: técnicos do antigo Sistema Telebrás alinhados com o modelo pós-privatização, técnicos do Sistema Telebrás contrários ao modelo da privatização, economistas e advogados com pouca ou nenhuma experiência prévia em telecomunicações, engenheiros com e sem experiência prévia em telecomunicações, administradores de empresa, servidores de carreira do Executivo e do Legislativo, servidores da própria Anatel… Em mais de 20 anos de mudanças no conselho, é possível afirmar com razoável grau de segurança que a origem do indicado pouco ou nada teve a ver com o seu êxito ou fracasso no conselho da Anatel. Empiricamente, o que determinou as melhores ou piores fases da agência sempre foi uma boa coordenação entre o órgão responsável por emanar as políticas (ministério) e o órgão responsável por executá-las e regular o mercado (Anatel). Coordenação esta que começa por diretrizes políticas bem formuladas, por clareza no papel de cada uma das partes e por autonomia sobre as atribuições legais do órgão regulador. Quando o diálogo não fluiu, a agência parou. Quando os propósitos e responsabilidades eram claras e coordenadas, deu certo. Isso aconteceu com FHC, Lula, Dilma e Temer. Ao longo destes anos, a Anatel se tornou um órgão mais técnico, com servidores quase todos concursados e uma cultura e práticas regulatórias muito mais sedimentadas. Muitas vezes até em excesso, com pouco espaço para a inovação e para o bom senso. Além disso, mesmo que a Anatel tenha tido muitos problemas ao longo desdes 20 anos, não foi (ainda) protagonista de nenhum grande escândalo nem desmando grave, coisa rara na administração pública.

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É natural e esperado que o governo que ganhe a eleição ou assume o governo dentro de um processo legal tenha determinada visão sobre como quer fazer as coisas e o que priorizar. Afinal, foi eleito para isso. Foi assim com FHC, Lula, Dilma e Temer. Será assim com Bolsonaro, e assim deverá ser com seu sucessor (ou com ele mesmo, caso se reeleja em 2022). A estabilidade das regras está ai para isso. Elas podem ser ajustadas, para garantir que os dirigentes das agências tenham os atributos necessários de experiência e reputação. É o que está sendo proposto, por exemplo, na Lei das Agências, que agora está de volta ao Senado para votação das mudanças feitas pela Câmara. Mas esvaziar o papel da Anatel para torná-la apenas um órgão fiscalizador é sem dúvida uma solução em busca de um problema. Ou um remédio para uma doença inexistente.

Se é para escolher uma prioridade, poderia-se começar pelas políticas setoriais, como inclusive já alertou o Tribunal de Contas da União. O que será a prioridade do novo governo, e qual será a diretriz passada para a Anatel? Quais serão os instrumentos e mecanismos de políticas públicas disponíveis? O que o governo eleito espera do mercado e tem a oferecer ara o cidadão que utiliza os serviços? Agora que já se sabe que o ministro Marcos Pontes terá as secretarias de telecomunicações, políticas digitais e radiodifusão sob sua batuta, já se pode começar a cobrar estas respostas.

Fato é que, nos últimos anos, as políticas setoriais estão travadas. De um lado, dependem de uma reforma legal no Congresso. De outro, dependem da situação fiscal do país, ou no mínimo de alguma visão mais estratégica e menos financeira da área econômica do governo. Os esforços de definição das políticas do governo Dilma foram atropelados pelo impeachment. Em dois anos e meio de governo Temer, por outro lado, pouco se viu de avanços concretos. O decreto de políticas de telecomunicações não saiu da Casa Civil; o Plano Geral de Metas de Universalização, que deveria ter sido ajustado em 2016, segue no limbo; o Plano Nacional de Internet das Coisas (para o qual foram investidos esforços significativos de tempo e dinheiro) não se materializou em um decreto ainda; nada foi feito em relação aos fundos setoriais, seja para desonerá-los, seja para utilizá-los. A Estratégia Digital até saiu do papel, como um bom início de trabalho rumo à necessária transformação digital do Brasil, mas faltou a execução dos passos seguintes, que é como o Estado será o orquestrador ou facilitador do processo. O Brasil está a duas semanas de sofrer sanções pesadas na OMC, o que forçará à necessidade de uma revisão geral na política industrial para o setor de TICs.

A Lei de Proteção de Dados foi aprovada, mas não tem um “locus”, alguém que garanta que ela será cumprida, nem como. As políticas de data center e semicondutores estão paradas por divergências com a área econômica. A execução do programa Internet para Todos, cuja proposta é levar conectividade onde ela não existe (30% dos lares no Brasil estão ainda excluídos da banda larga) está sendo retomada agora, por falta de um esforço conjunto e coordenado entre empresas e governo para solucionar o problema das carências de acesso. O Brasil segue sendo um país com baixos índices de produtividade, inclusive pela falta de uma política de uso intensivo das TICs, seja pelo governo, seja pelas atividades econômicas. A Telebrás é uma estatal longe da sustentabilidade econômica, responsável por um ativo estratégico de R$ 3 bilhões chamado Satélite Geoestacionário de Deefesa e Comunicações, e que tem como missão legal implementar políticas públicas, em um ambiente em que recursos públicos são escassos. Para fazer a conta fechar, disputa o mercado de governo com empresas privadas.

Enquanto isso, a Anatel caminha com freio de mão puxado, sem inovar ou conseguir ajustar o ambiente regulatório à realidade digital que o mercado e os consumidores já enfrentam. Em grande parte, por medo do Tribunal de Contas da União, que parece se orientar por balizadores não necessariamente alinhados com o mundo real, mas pela letra fria da lei.

Duas concessionárias de STFC (um serviço público que está morrendo a cada dia, diga-se de passagem) estão em situação crítica do ponto de vista financeiro. Mesmo com o respiro da renegociação do ano passado, a maior delas, a Oi, que atende sozinha com serviços fixos quase 3 mil municípios, segue ligada a aparelhos esperando uma solução definitiva (possivelmente uma consolidação ou a chegada de um grande investidor), mas para isso precisa de um ambiente político regulatório mais moderno e previsível.

Os serviços de telecomunicações tradicionais enfrentam todos os dias a concorrência de empresas de Internet, que chegam sem obrigações regulatórias e com regras tributárias bem mais vantajosas. O mundo vê fusões entre grandes conglomerados de mídia e de telecom, enquanto o Brasil não sabe ao certo como interpretar a lei local a esta realidade global.

Nos municípios, a burocracia para a instalação de antenas não dá sinais de melhora, ao contrário. Pelo menos metade dos projetos de novas ERBs estão embarreirados pelos obstáculos colocados por prefeituras e detentores de direitos de passagem. Isso porque o Brasil tem apenas 90 mil torres, menos de um terço do que tem os EUA, enquanto países como a China têm mais de 2 milhões… apenas em 4G. No campo dos postes, Anatel e Aneel tentam, há quase 20 anos, arbitrar interesses antagônicos de empresas de energia (detentoras dos postes) e empresas de telecomunicações (que precisam passar suas redes). Sem sucesso, enquanto postes se tornam depósitos de fios a céu aberto.

Na radiodifusão, enquanto o mercado ainda caminha para concluir a transição do analógico para o digital até 2023, não se vê nem sinal de um debate sobre a política setorial para o futuro, sobre como ficará a radiodifusão no ambiente 4k, sobre como esse mercado será regulado no ambiente digital. Aliás, não existe sequer uma análise sobre a sustentabilidade econômica do setor de radiodifusão e, portanto, de como ele deve ou não ser regulado. E a secretaria de radiodifusão segue sendo, há décadas, o mesmo cartório de intermináveis processos, estes sim altamente vulneráveis a ingerência política e interesses não-republicanos.

E no segmento de satélites as regras tributárias atuais estão anos-luz distantes do potencial de inclusão digital das tecnologias e do futuro impacto das redes de órbita média e baixa. E a política espacial brasileira segue irrelevante do ponto de vista econômico e geopolítico (e, obviamente, sem recursos).

Isso para não falar na carga tributária em geral, que não é exclusiva do setor de telecomunicações, mas que leva metade daquilo que o usuário paga pelos serviços, boa parte em fundos com propósito específico mas que não retornam para o setor. Também deve-se lembrar as margens declinantes das empresas de telecom versus a necessidade crescente de expansão da infraestrutura para dar conta da demanda da sociedade por banda larga. E a necessidade urgente de modernizar a forma de relacionamento com o consumidor, garantindo melhor atendimento e eficiência dos serviços, algo hoje limitado por princípios regulatórios ultrapassados e falta de proatividade setorial.

A agenda político regulatória setorial que o governo Bolsonaro vai enfrentar é praticamente a mesma que se tinha no final dos anos 90, com intermináveis (e inacreditáveis) debates sobre orelhões e redes de fios de cobre  reversíveis, ao passo que o mundo discute a realidade 5G e as implicações da conectividade ubíqua, redes virtuais e totalmente gerenciáveis, inteligência artificial e machine learning, serviços inteligentes e os cada vez mais relevantes serviços OTT, cibersegurança e privacidade de dados. Tudo isso apenas para ilustrar como a ingerência política nas indicações ao conselho da Anatel, que de fato existe, porque a lei assim o permite (afinal, cabe ao Executivo indicar e ao Senado o papel de sabatinar os indicados para a Anatel, assim como o faz para outras autarquias e para o Judiciário, por exemplo), é o menor dos problemas a serem enfrentados pelo novo governo.

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