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Enquanto governos travam corrida pela moeda digital, as criptomoedas avançam em circulação

O dia era 22 de maio de 2010. Um sujeito chamado Laszlo Hanyecz, morador da Flórida, queria duas pizzas no restaurante Papa Johns’. Como ele não tinha dólares, entrou numa comunidade chamada Bitcoin Talk e conseguiu que uma pessoa aceitasse os seus 10 mil bitcoins em troca de comprar-lhe as duas redondas por US$ 40. Essa é considerada a primeira transação da história com uma criptomoeda.

Uma década mais tarde, a Amazon está se preparando para aceitar pagamentos com bitcoin em seu marketplace. Os suíços também poderão usá-las no comércio em geral, utilizando o serviço WL Crypto Payments, fruto de um acordo entre uma das maiores empresas de pagamento europeias, a Worldline, e a Bitcoin Suisse. Mesmo caminho de Visa e Mastercard. Se o comilão Laszlo tivesse mantido seus bitcoins, a esta altura teria uma fortuna de US$ 470 milhões, mais de 10% da receita anual da Dominos Pizza, a maior cadeia do mundo no setor.

O ecossistema cripto está evoluindo e se diversificando numa sopa de siglas e termos pouco inteligíveis a quem não está acompanhando o mercado. Só que é importante entendê-lo, já que ele vai transformar a forma como compramos ou trocamos bens e valores. E isso não é tudo. A própria internet pode entrar em uma nova era.

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Conforme escreveu o especialista em história econômica Harold James, da Princeton University, em um artigo publicado em julho, “as tecnologias digitais estão comandando uma nova revolução monetária que pode acabar de vez com a primazia do dólar”, dando a entender o papel que ativos digitais como o Bitcoin e o Ether (ETH) vão desempenhar numa reforma da economia global.

Como já escrevi em artigo anterior, o dinheiro foi uma invenção engenhosa para simplificar as trocas humanas e as cédulas uma maneira de facilitar transações de grande valor sem ter de carregar toneladas de metal. Repare que na história econômica sempre se atribui o valor do dinheiro a uma determinada reserva de algo físico.

Depois da 2ª Guerra, Japão, Alemanha, França, Reino Unido, Canadá e Estados Unidos celebraram o acordo de Bretton Woods, segundo o qual esses países não poderiam emitir mais moeda que o valor correspondente à quantidade de ouro que possuíam. Essa noção era meio difícil de entender até a terceira temporada da série La Casa de Papel, quando o bando do professor invade o Tesouro Nacional onde a Espanha guardava sua “reserva em ouro”.

Em 1971, o então presidente Richard Nixon chuta o sistema de Bretton Woods e começa a emitir dólares sem lastro em ouro. Por uma série de fatores do mundo daquela época, o dólar acabou virando uma moeda internacional e sinônimo de lastro. O Brasil, por exemplo, orgulha-se de ter hoje uma confortável reserva em dólar, o que ajuda o Banco Central a controlar nossa moeda.

A causa subjacente à crise de 2008 foi o fato do sistema financeiro – sobretudo nos EUA, mas não apenas – exagerar no risco e criar dinheiro demais, na forma de empréstimos, por exemplo, sem qualquer lastro real. Foi nesse contexto que o mitológico Satoshi Nakamoto criou o Bitcoin, uma moeda que exerceria para o mundo digital o mesmo papel que o ouro fazia no mundo físico, ou seja, uma reserva de valor. A cotação oscila bastante atrelada àquela velha lei que a gente aprende ainda na escola: da oferta e da procura.

Como não era aceito como meio circulante, durante boa parte de sua existência o Bitcoin foi essencialmente um ativo financeiro, mais ou menos como investir em ações ou fundo de renda fixa. Não por outra razão, você verá N corretoras financeiras hoje aconselhando formar “posições” em bitcoins.

A questão é que sem ser aceito como pagamento por bens e serviços, o bitcoin permanecia fora da economia real. A partir da sua arquitetura de segurança descentralizada, tecnologia chamada blockchain, surgiram outros produtos, dos quais um dos mais relevantes é o Ethereum, lançado em 2015, e que introduziu o conceito de smart contracts ao mundo cripto.

Se o Bitcoin é o ouro digital, o Ethereum pode ser considerado o petróleo. Porque é uma tecnologia revolucionária que serve de base para outras aplicações serem construídas sobre ela. Você já se deu conta o quanto o petróleo está presente nas nossas vidas no mundo físico? Engana-se quem imagina só um grupo de xeiques decidindo o preço da gasolina.

O petróleo, além de ser combustível de veículos, também contribui para iluminar nossas casas e cidades, manter os equipamentos médicos ligados e está presente nas roupas que vestimos. A partir dele se faz o plástico que reveste todos os aparelhos eletrônicos que usamos. É um material sobre o qual praticamente nossa vida inteira é construída hoje.

Se o ouro negro nos trouxe o progresso do século 20, o Ethereum 2.0 tem a capacidade de nos empurrar para uma nova era da internet, a Web 3.0, ou a terceira geração da rede mundial, tendo sido a primeira a chegada da world wide web e a segunda a das redes sociais.

É provável que você tenha ouvido falar de Ethereum como criptomoeda, mas ele não é moeda e sim um token. O termo em inglês significa algo como amuleto, símbolo físico de algum fato. Pense numa medalha olímpica, um diploma de faculdade. Digitalmente falando, ele pode representar um contrato, um diploma, uma obra de arte. As possibilidades são infinitas porque a versão 2.0 do Ethereum é um aperfeiçoamento na própria tecnologia blockchain.

Por sua características de ser um registro público descentralizado e segurança com criptografia muito forte, o que impede falsificações, ela pode ser utilizada como código base para todo tipo de aplicação; daí a analogia com o petróleo. Dentro do ambiente cripto ele pode ser classificado como um Aplicativo Descentralizado.

E por que isso é disruptivo? A descentralização abre espaço para uma internet efetivamente livre. Hoje, com quase todas as buscas sendo feitas pelo Google e uma parte importante dos sites hospedados na nuvem da Amazon, o conceito de liberdade na rede é “pra inglês ver”.

A partir do Ethereum, por exemplo, surgiram os NFTs, sigla em inglês para tokens não-fungíveis, ou seja, de valor único, não intercambiável. Pense no dinheiro físico. Se eu vou pagar um café com uma nota de 10 reais, não importa qual cédula eu vou usar, contanto que seja do valor adequado. No caso do NFT não. Se eu tenho um NFT de uma obra de arte, significa que aquela obra é só minha (como um quadro original). Por isso, os NFTs servem para colecionadores e até como contratos. É um certificado de propriedade não falsificável.

Se nada mudar no caminho, a Web 3.0 pode ser descentralizada, sem exigir confiança da parte dos usuários (de que os sites e suas regras trabalham a seu favor e não contra você), e democrática, pois todo novo código adicionado ao Ethereum tem de passar por um processo de votação da comunidade.

A evolução do ecossistema

Por mais que pessoas, empresas e muitos analistas tenham passado anos esnobando as criptomoedas, acusando-as de ser pouco mais do que um esquema de pirâmide, o ecossistema de desenvolveu. E sabe por que a gente fala no plural? O mundo não tem nem 300 moedas nacionais. Em 2018, havia 1.600 coins diferentes. No ano seguinte, o número havia pulado para mais de 3 mil. Fora o Bitcoin, temos o Litecoin, o Dogecoin, o Ether. No gráfico abaixo você vê um mapa de todas as categorias desse sistema.

Um resumo do ecossistema de criptoativos / Fonte: Martin Thoma – Gitconnected

Para não complicar demais as coisas, vamos focar naqueles que efetivamente funcionam com o conceito de moeda a que estamos acostumados. Temos as reservas de valor, o dinheiro programável e também as chamadas stablecoins, moedas digitais lastreadas em ativos digitais como o próprio dólar.

Quais seriam as principais vantagens delas em relação ao que temos hoje?

  • Liberdade: governos e corporações não têm o poder de bloquear a transação.
  • Sem fronteiras: sem bloqueios de regras nacionais, a compensação da operação se torna muito mais ágil.
  • Acessível: uma carteira digital não é uma conta bancária, quebrando portanto a lógica de barreiras ao capital hoje impostas a grupos de baixo perfil lucrativo.
  • Segurança: evita alterações fraudulentas feitas por terceiros.
  • Custos mais baixos: menos intermediários significa menos tarifas.
  • Maior controle financeiro: as pessoas têm acesso total à conta

Em resumo, da mesma forma que a internet alterou para sempre a forma como a gente estuda, trabalha e vive, as criptomoedas vão modificar o panorama do mercado financeiro internacional e também muitas relações hoje intermediadas por terceiros.

O proprietário de um imóvel poderá mandar um contrato inteligente para o inquilino com todas as condições automatizadas, eliminando o corretor e a imobiliária, afetando negativamente até mesmo unicórnios como a brasileira Quinto Andar.

Aplicativos como o SPEDN podem fazer a conversão das criptomoedas em dinheiro local sem riscos para o comerciante e maior conveniência para o consumidor, tanto em lojas físicas como no e-commerce. As operadoras de cartão de crédito como Visa e Mastercard estão se preparando para aceitar transações em determinadas moedas. Porque, de outra forma, não tem mais sentido precisar de cartões de plástico, maquininhas, etc. Já se perguntou quantas empresas que produzem cartões de plástico e maquininhas podem desaparecer em alguns anos ?

Imigrantes tentando enviar dinheiro para os parentes podem converter em um stablecoin atrelado ao dólar e evitar perder muito na conversão para moeda local e sem pagar IOF ou imposto similar. Ou seja, o futuro da atividade econômica não precisaria de cartórios, imobiliárias, maquininhas e os próprios cartões de crédito e débito, nem corretoras, nem bancos. Dá pra entender porque os bancos desdenham das criptos na mídia. Mas olha que interessante esse dado: dos cem bancos mais ricos do mundo, 55 estão investindo em empresas relacionadas ao ecossistema cripto, entre eles gigantes como Citigroup, Barclays, Goldman Sachs, JP Morgan Chase e o BNP Paribas.

E a política econômica?

Talvez os mais prejudicados pela descentralização revolucionária das criptomoedas sejam os bancos centrais. Afinal, as moedas são altamente reguladas também porque são um instrumento fundamental de política econômica. Você emite mais ou menos moeda, aumenta ou abaixa a taxa de juros, vende reservas em dólar ou compra no mercado. Tudo para controlar outros indicadores, como inflação, volume de crédito disponível, etc.

No ambiente cripto, nada disso existe. Portanto, enquanto era apenas uma modalidade de investimento, ok. Se vira moeda corrente competindo com as fiduciárias (dólar, euro, real) os governos perdem instrumentos poderosos de política monetária e, de quebra, tornam uma parte enorme do sistema financeiro inútil. Pra que vou ter conta em banco se posso pagar tudo com meu dinheiro sem dar satisfação ao banco e, pior, ao governo?!

Apesar das declarações desairosas às criptomoedas do ex-presidente do Fed Alan Greenspan, o banco central americano estuda desde 2017 a possibilidade de criar um dólar digital, mas o sinal de alerta foi ligado mesmo quando o Facebook, com seus 2,8 bilhões de usuários, anunciou em 2019 estar desenvolvendo um stablecoin seu – hoje batizado de Diem.

Como era de se esperar, a maior oposição ao dólar digital vem do sistema bancário que está sentado sobre uma montanha de US$ 17 trilhões em depósitos à vista com os quais financiam todas as suas operações, incluindo crédito a pessoas físicas e jurídicas e não quer ter o Fed como seu concorrente.

Os que veem com ceticismo o dólar virtual argumentam que as transações interbancárias evoluíram bastante nos últimos anos, tornando às empresas pouco interessante migrar para moedas que não tenham um garantidor como os bancos centrais e sejam tão voláteis como o Bitcoin, que já chegou a valer US$ 64 mil e hoje está em US$ 46 mil.

Por outro lado, stablecoins, como o TrueUSD ou Paxos, não seriam uma ameaça real à dominância do dólar no mundo, uma vez que não teriam o problema da volatilidade e com todas as vantagens das criptomoedas? Não vamos perder de vista que o dólar desde o fim do sistema Bretton Woods é garantidor de si mesmo; se ele perdesse essa condição, o triliardário déficit público dos EUA viraria uma bomba-relógio.

O maior problema para os EUA está no fato de que as moedas nacionais digitais viraram uma espécie de corrida espacial do século 21. E a China está com uma boa vantagem: em julho anunciou que mais de 10 milhões de cidadãos já estavam aptos a participar de testes do yuan digital, que já é aceito lá por cadeias como Mc.Donald’s e Starbucks. Por ser um regime autocrático, lá as criptomoedas foram simplesmente banidas para evitar qualquer concorrência.

Nos EUA, a coisa é mais complexa. Agora em setembro a Câmara deve votar o grande Plano de Infraestrutura de Biden, já aprovado pelo Senado. Parte do ambicioso plano do presidente democrata seria financiado com a taxação das transações de criptomoedas.

Se aprovado com a redação atual, todos os programadores envolvidos com o código do blockchain e os mineradores, que certificam as transações e zelam pela segurança do sistema, virariam corretores e teriam de pagar imposto e declarar à Receita dos EUA informações sobre as transações de terceiros – das quais não dispõem.

Especialistas afirmam que, se isso efetivamente acontecer, a chance de outro tombo na cotação do Bitcoin e demais criptomoedas é grande, tal qual a reação depois da proibição das criptos na China. Pior que isso, para eles, é o fato de que essa decisão do Congresso levaria o desenvolvimento do blockchain para fora dos EUA, o que faria o país perder a liderança numa tecnologia estratégica. Ou seja, o Silicon Valley da Web 3.0 não seria nos EUA.

Aparentemente, o mercado financeiro 2.0 já se deu conta de que o Bitcoin não é pirâmide. Uma indústria que bateu US$ 2,2 trilhões em ativos veio, claro, para ficar.

Gráfico mostra a capitalização do mercado de criptoativos, mostrando a dominância do Bitcoin / Fonte: Cointelegraph

Um sinal evidente do quanto as moedas virtuais vieram para corrigir a falta de acesso ao mercado financeiro formal está na lista dos países que mais as transacionam. O campeão mundial é a Nigéria, onde 32% da população têm experiência com o ecossistema. O top 5 é completado por Vietnam, Filipinas, Turquia e Peru, todos na casa dos dois dígitos, enquanto nos EUA é 6%.

No Brasil cerca de 1,4 milhão de pessoas utilizam coins. Embora isso represente apenas 0,6% da população, o dado se torna relevante quando sabemos que globalmente, o Bitcoin cresceu 113% no primeiro trimestre de 2021. O crescimento de outras moedas dá ideia do aquecimento do mercado:

  • Dash: 198%
  • Ethereum: 324%
  • Maker: 760%
  • Dogecoin:555%

A Amazon deve aceitar pagamento em Bitcoins até o final desse ano enquanto desenvolve sua própria moeda e a capilaridade do serviço de nuvem AWS deve facilitar a disseminação da prática. A Tesla, que havia começado a aceitar no início do ano, interrompeu a prática depois que Elon Musk fez uma declaração avaliando que o processo de mineração não era sustentável, mas que o retomaria quando essa questão fosse corrigida.

Portanto, é bom os políticos, que mal sabem usar o Twitter, acordarem para a vida e tratarem de entender as consequências dos criptoativos no comportamento das pessoas e na capacidade dos governos de ainda manterem algum controle sobre a política monetária. Porque eles não vão sumir nem serem banidos, ao menos no mundo democrático. Afinal, o bitcoin não é uma corporação nem tem CEO para depor em comitê do Senado.

Não vai demorar muito para podermos seguir os passos de Lazlo Hanyecz e pedir aquela pizza do fim de semana pagando em criptomoeda. Vai uma redonda aí?

*-Sobre o autor: Omarson Costa atua como Conselheiro de Administração, com formação em Análise de Sistemas e Marketing, tem MBA e especialização em Direito em Telecomunicações. Em sua carreira, registra passagens em empresas de telecom, meios de pagamento e Internet. As opiniões expressas nesse artigo não necessariamente refletem o ponto de vista de TELETIME.

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