O Decreto 12.282, publicado em 2/12/2024, transfere da Anatel para o Ministério das Comunicações competências da agência referentes à definição de projetos e compromissos realizados a partir do aporte de recursos decorrentes de leilões para o uso de radiofrequência, além dos projetos determinados pela Anatel como obrigações de fazer (substituição de sanções por descumprimento de obrigações regulatórias por novas obrigações).
Um dos artigos do decreto dispõe que "o Ministério das Comunicações definirá as diretrizes e as estratégias para a execução de políticas públicas de telecomunicações, de radiodifusão, de conectividade e de inclusão digital, no âmbito da administração pública federal, inclusive aquelas relacionadas aos compromissos realizados a partir do aporte de recursos decorrentes de leilões de autorização para o uso de radiofrequência".
O Decreto 12.282/2024 também tenta, explicitamente, retroagir disposições contidas em leilões que já ocorreram. Qualquer edital, não impugnado, homologado pela autoridade competente e com os consequentes contratos celebrados e executados, não pode contrariar o princípio da segurança jurídica. É um ato jurídico perfeito. Não há como mudar as disposições editalícias.
Pode isso, Juscelino? Não, não pode! A Lei Geral de Telecomunicações (LGT), Título II – Das Competências, art. 18 e incisos (I a IV), define o que cabe ao Poder Executivo (exercido pelo Presidente da República, auxiliado pelos Ministros de Estado) por meio de decreto. Por sua vez, o art. 19 dispõe que compete à Anatel adotar as medidas necessárias para o atendimento do interesse público e para o desenvolvimento das telecomunicações brasileiras, atuando com independência, imparcialidade, legalidade, impessoalidade e publicidade, e mais os incisos (I a XXXI).
A presença das agências reguladoras, como órgãos de Estado, livres das pressões políticas é indispensável para o sucesso dos investimentos para suprir os setores de infraestrutura no Brasil. Portanto, é relevante refletir a respeito da autonomia das agências reguladoras. Preservar a independência das agências é imprescindível para que possam implementar adequadamente as políticas setoriais, definidas pelo Poder Executivo ou Legislativo.
As agências diferem de outros organismos governamentais porque têm de tomar decisões que pressupõem o exercício de poder discricionário. Para que elas sejam eficientes e eficazes faz-se necessário que disponham de competência técnica e desfrutem de liberdade gerencial, autonomia, prestem contas e disponham de regras e controles internos para limitar decisões monocráticas.
Para o exercício de suas competências legais a Anatel dispõe, como órgãos superiores, os Conselho Diretor e Conselho Consultivo, sendo o primeiro o seu organismo máximo. Dispõe, também, de Procuradoria, Auditoria, Corregedoria e Ouvidoria, sem prejuízo da criação de outras unidades necessárias ao desempenho das suas funções. As sessões do Conselho Diretor são públicas. E os conselheiros diretores são brasileiros de reputação ilibada, com formação universitária e elevado conceito no campo de suas especialidades, escolhidos pelo Presidente da República e submetidos à aprovação do Senado Federal.
O delineamento do perfil jurídico das agências reguladoras no país reside em premissas extraídas do próprio sistema constitucional brasileiro. Tanto que a competência normativa da União não compreende apenas a edição de leis, mas também a edição de normas hierarquicamente inferiores, desde que não exorbitem do poder regulamentar. A regulamentação, em nível infralegal, cabe ao Poder Executivo.
Importa destacar que portarias ministeriais têm que estar em conformidade com decretos presidenciais, decretos em conformidade com leis e leis em conformidade com a Constituição. A regra é clara. Caso a regra não seja cumprida cometem-se, respectivamente, irregularidades, ilegalidades ou inconstitucionalidades.
Cabe lembrar que a Anatel é peça-chave para inspirar (ou não) a certeza dos investidores na estabilidade das regras dispostas em editais para o mercado de telecomunicações brasileiro. Uma entidade dotada de competência técnica e de independência decisória inspira confiança. Ao contrário, uma organização sem autonomia gerencial, com algum tipo de dependência restritiva (ou sem capacidade técnica), gera desconfiança e, consequentemente, afugenta os investidores.
Diante das circunstâncias, a conclusão possível é que somente outra lei poderá buscar a revisão do papel da Anatel, pois ela funciona como órgão de Estado, imune à eventuais tentativas de interferências políticas em suas decisões puramente técnicas. Se supostamente algum dos membros do Conselho Diretor da Agência não cumpre seus deveres e proibições inerentes ao cargo aplique-se a ele o devido processo legal, em vez de equivocadamente metamorfosear a Agência, ainda mais por decreto e portaria sem a devida sustentação legal e constitucional.
* – Sobre o Autor: Juarez Quadros é Engenheiro Eletricista, Evangelista Regulatório e Tecnológico. Foi ministro de Estado das Comunicações e presidente da Anatel. As opiniões expressas nesse artigo não necessariamente refletem o ponto de vista de TELETIME.