Caso Fox: quando a legislação é atropelada pela realidade

Cristiane Sanches, conselheira da Abrint

Por Cristiane Sanches, conselheira da Abrint

As discussões recentes relacionadas ao mercado de TV por assinatura servem como "fermento natural" para produzir avanços regulatórios e garantir a construção de um regime jurídico estável.

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Tudo se inicia em 2017, quando oCADE, sob o prisma concorrencial, autorizou a fusão entre a AT&T(controladora da Sky) e a Time Warner (atual Warner Media), condicionando àinterdependência das operações das empresas no Brasil, por 5 anos. Agora, sob oprisma regulatório, cabe a Anatel decidir se a operação pode ou não seraprovada em face da Lei do SeAC.

Vamos entender: a Lei do SeACestabeleceu a autonomia das atividades próprias da cadeia de valor do mercadode TV por assinatura (produção, programação, empacotamento e distribuição),impondo limites à participação societária de empresas de distribuição (leia-se,prestadoras de serviços de telecom) em produtoras e programadoras, com sede noBrasil. Essa chamada vedação à "propriedade cruzada" está na mira doLegislativo, que pretende revogar os artigos 5° e 6° da Lei do SeAC,coincidindo com o momento histórico de decisão do Conselho Diretor da Agênciasobre o caso concreto da fusão das empresas.

E o que uma possível alteraçãolegislativa, capaz de permitir a integração vertical de toda a cadeia de TV porassinatura, significaria para a Internet? Antes de responder, precisamosentender qual foi a razão original do Estado para regular a comunicação demassa. Historicamente, os meios tradicionais de comunicação de massaconsolidavam a opinião pública, serviam de termômetro para as angústias sociaise impactavam a própria soberania do Estado. Até então, nada mais natural queregular esse mercado e estabelecer restrições.

Entretanto, hoje em dia, diante doadvento exponencial das redes sociais e da fluidez da comunicação entre osindivíduos pela internet, questiona-se qual a real dimensão de poder dos meiosde comunicação de massa tradicionais. A regulação atual, no que tange àcontinuidade da proibição da verticalização da cadeia, parece perder o sentido.O modelo vigente da TV por assinatura já não encontra a mesma receptividade nomercado consumidor. O regime de empacotamento, hoje, apresenta-se como amarracustosa e sem sentido para o cliente. O consumidor quer uma conexão de dados dequalidade para dar vazão ao seu anseio de contratação livre do conteúdo de suapreferência.

Como se não bastasse o timing dafusão dessas empresas, aquele "fermento natural" é acrescido de um segundoelemento: a denúncia da Claro contra a Fox e a Topsports, perante a Anatel,questionando os modelos de venda de conteúdos lineares em plataformas OTT, viainternet, mediante assinatura mensal. A matéria de fundo é clássica: essaoferta pelas programadoras é uma prestação de serviço de telecom (SeAC) ou umaoferta de serviço de valor adicionado (SVA)?

A primeira reação da agência, ao expedir medida cautelar parcialmente favorável a Claro, restou, até o momento, suspensa pelo Poder Judiciário. A ABRINT posicionou-se veementemente contrária à decisão precipitada da Anatel, apresentando suas contribuições pelo processo de tomada de subsídios instaurado e reforçando a premissa da não ingerência da regulação sobre a Internet.

Seja via discussão da fusão dasempresas, seja por meio da disputa entre operadora de telecom e serviço OTT, orespeito à diferenciação, já positivada na lei, entre serviços detelecomunicações e serviços de valor adicionado é o único caminho para segarantir segurança jurídica suficiente para a perpetuação dos investimentos eda inovação na Internet. Qualquer tentativa de alinhamento horizontal dessesconceitos seria nefasta para o país e especialmente para o seu mercado de bandalarga.

Apenas a avaliação conjunta destesdois elementos promove mais maturidade regulatória e institucional para o setore afasta a Anatel do risco de se incorrer naquilo que o economista Alfred E. Kahnenquadraria, possivelmente, como "tirania das pequenas decisões".

Assim, propomos que, em vez de seimpor uma determinada medida regulatória para resolver um problema específico,que a discussão se dê na esfera do exercício do Poder Legislativo, de forma anão comprometer valores inerentes à própria arquitetura da Internet, enquantouma Rede livre e colaborativa, e respeitando-se a distinção entre o serviço detelecom e o serviço de valor adicionado.

O palco das discussões sobre a TV porassinatura deve iluminar a continuidade da Internet como ambiente não regulado.Estamos certos de que a emergência de novas formas de comunicação baseadas naInternet torna obsoleta a construção de políticas regulatórias que amarramregimes jurídicos a implementações tecnológicas específicas.

Não nos esqueçamos que o interessepúblico sobre a regulação da Internet já foi objeto de intensa discussão quandoda elaboração do Marco Civil, ao sedimentar as premissas de segurança,privacidade e neutralidade de rede. Qualquer ingerência mais extensa sobre ouniverso da Internet não estaria alinhada à essa expectativa social e, nessesentido, deslegitimaria o papel da regulação de proteção de valores tuteladosna nossa democracia.

Também, o desenvolvimento de novosserviços potencialmente substitutivos em relação aos serviços "tradicionais" detelecomunicações não justifica, por si só, a regulação. Além de não ter sidoesse o propósito da Recomendação D.262 da UIT, o mercado de telecom mostra quea crescente demanda do SVA sobre a infraestrutura vem sendo resolvida de formacriativa e inovadora, seja através de novos modelos de negócios e parcerias,seja mediante a adoção de managed services e CDNs,que otimizam a capacidade de rede e garantem uma experiência ainda melhor parao cliente.

E não seria esse o propósito últimoda regulação? A regulação deve preservar os direitos fundamentais e garantirque o desenvolvimento tecnológico também sirva ao propósito de aprimorar odesenvolvimento da personalidade e das condições econômicas e sociais dosindivíduos e coletividades, e não o contrário. Nosso Marco Civil seguiu talmotivação e estabeleceu as bases para a promoção das liberdades e dos direitosna Internet.

Eventual iniciativa de regulaçãorepressiva da Internet e dos serviços de valor adicionado padeceria decaducidade precoce ou colocaria o Brasil na contramão da inovação.

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