Regulação de plataformas digitais: por quê e para quem?

Tiago Sousa Prado

Há alguns meses escrevi aqui sobre os desafios concorrenciais e regulatórios decorrentes do grande poder de mercado de plataformas digitais. Desde então, o número de casos antitruste abertos nos EUA para investigar potenciais práticas anticompetitivas das big techs se multiplicou. No entanto, na academia, alguns autores argumentam que as longas batalhas travadas entre autoridades antitruste e as big techs nas últimas duas décadas demonstraram as limitações de remédios puramente ex-post para fomentar a concorrência na economia digital. 

Como alternativa, tem ganhado espaço a discussão sobre adoção de remédios regulatórios (ex-ante), mais flexíveis e ágeis, sobre as plataformas dominantes. [1] O objetivo seria prover uma resposta rápida, capaz de reduzir barreiras à entrada de novos players em mercados dominados pelas grandes plataformas, sem ameaçar a manutenção de incentivos à inovação na economia digital. Para isso, a interoperabilidade entre plataformas e a possibilidade de que o usuário faça portabilidade de seus dados entre plataformas estão entre as medidas regulatórias mais debatidas até o momento, assim como a criação de um código de conduta que governe a atuação das plataformas como agentes reguladores de transações (comerciais ou não) entre seus usuários. 

Nesse contexto, ao menos duas questões fundamentais permanecem em aberto (mesmo na academia), e que precisam ser endereçadas antes de qualquer tentativa de intervenção regulatória em um ambiente tão dinâmico quanto o da Internet. Primeiramente, faz-se necessária a busca de evidências dos danos causados pela atual estrutura concentrada do ecossistema digital, capazes de justificar de maneira contundente uma intervenção regulatória. Além disso, é preciso aprofundar o debate sobre poder de mercado na economia digital, a fim de estabelecer critérios técnicos claros para a definição de quais plataformas devem ser objeto de regulação e em quais mercados digitais. 

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Por que regular as plataformas digitais? 

Instrumentos regulatórios são geralmente acionados para a correção de falhas de mercado capazes de distorcer o seu funcionamento eficiente, levando à oferta de serviços a preços acima do ótimo competitivo e/ou com qualidade insatisfatória, com consequente perda de bem estar social. Em uma primeira análise, esse não seria o caso dos serviços prestados pelas big techs. Sem dúvida, são enormes os ganhos de produtividade e bem estar social gerados pelo uso intensivo de ferramentas de busca, localização, mídia social, comunicação etc oferecidas pelas grandes plataformas digitais, em muitos casos de maneira gratuita para o usuário final. Tantas comodidades adicionadas ao nosso dia-a-dia pelas plataformas acabam por enfraquecer o argumento, baseado na teoria econômica, de que mais competição levaria à oferta de serviços ainda mais eficientes do que os que conhecemos atualmente.

De fato, o argumento de quem defende a necessidade de regulação das plataformas se concentra em outro aspecto – a necessidade de garantir que tais plataformas, bem como todo o ecossistema da internet, continue inovando a taxas crescentes, como nas últimas três décadas. A teoria econômica aponta que um ambiente competitivo, aliado a um eficiente sistema de patentes, são condições necessárias à atração de investimentos em inovação. Portanto, o ambiente altamente concentrado em diversos mercados dominados pelas big techs traria, em teoria, riscos à inovação. Será?

Um ponto comum em diversos relatórios de governo e estudos acadêmicos sobre competição na economia digital é o reconhecimento da ausência de evidências empíricas do dano à inovação provocado até aqui pelo ambiente concentrado da Internet. A estratégia agressiva de aquisições de startups perseguida pelas plataformas tem despertado a atenção de pesquisadores e agências antitruste, que têm investigado se tal conduta visa apenas a defender seus mercados ("buy and kill").[2] Outro aspecto sob investigação na academia e agências de governo é a existência de "kill zones" para start-ups, criadas devido ao improvável sucesso de competir diretamente contra uma grande plataforma digital. Argumenta-se que quando uma big tech adquire uma startup em um determinado nicho da indústria, outras startups atuantes no mesmo nicho passariam a enfrentar dificuldades na atração de venture capital.[3]

Embora haja racionalidade em tais argumentos, pouco trabalho sistemático foi realizado até aqui para examinar empiricamente se tais efeitos adversos realmente têm ocorrido em grande escala, as condições sob as quais eles podem se materializar, e o que pode ser feito para mitigá-los. Em um artigo de minha co-autoria, apresentado em conferência da International Telecommunications Society em junho do ano passado, são apresentados alguns primeiros resultados empíricos que, ao contrário do argumento sobre as "kill zones", apontam para a entrada das big techs em certos nichos da indústria como fator de atração de venture capital para outras startups do mesmo nicho.

Poder de mercado na economia digital

O conceito de poder de mercado na economia digital e os métodos para definição de quais agentes detêm poder de mercado, seja para fins de adoção de medidas antitruste ou regulatórias, ainda não estão definidos. O conceito tradicional de poder de mercado, que se relaciona com a capacidade de uma empresa manter preços acima do equilíbrio competitivo, precisa ser redefinido no contexto dos mercados digitais. Nesses novos mercados, caracterizados pela presença de efeitos de rede (network effects) e de economias de escala e escopo, os preços de varejo são em sua maioria zero, e vantagens competitivas são criadas pelo acúmulo i) de dados pessoais de usuários (digital traces) e ii) pelo desenvolvimento de tecnologia para processamento desses dados em larga escala e em tempo real (por exemplo, algoritmos proprietários de machine learning e big data). Além disso, algumas plataformas digitais possuem grande market share em vários mercados, o que possibilita a elas o acúmulo de uma maior diversidade de dados dos usuários da Internet, o que as confere grande vantagem competitiva.[4]

Outro artigo de minha autoria, que será apresentado este mês no TPRC48, maior conferência de pesquisa sobre política de internet nos EUA, examinamos, de maneira mais detalhada, as formas e manifestações de poder de mercado na economia digital, e propomos uma estrutura para medir poder de mercado de plataformas digitais que possuem posição dominante em vários mercados. No artigo, demonstramos que plataformas incumbentes em vários mercados digitais possuem uma demanda mais inelástica, o que possibilita a elas a inserção de mais conteúdo publicitário em seus serviços, a prática de preços mais elevados (por exemplo, em serviços premium), e um maior nível de extração de dados pessoais dos seus usuários, a principal fonte de vantagem competitiva na economia digital.

Além disso, evidenciamos que o conceito tradicional de Poder de Mercado Significativo (PMS), utilizado no Brasil e no mundo para análises de competição, apesar de aplicável ao contexto da economia digital, com algumas adaptações, teria eficácia limitada para promover a competição no ecossistema da internet, pois a análise é feita dentro de um único mercado relevante, e assim não considera a influência do market share da plataforma em outros mercados. Como alternativa ao framework de incentivo à competição em mercados específicos, medidas mais eficazes precisarão ser adotadas de maneira coordenada em vários mercados digitais.

Conclusão

A discussão sobre economia das plataformas, seja na perspectiva de defesa da concorrência, seja do ponto de vista regulatório, tem se tornado mais presente a cada dia no Brasil e no mundo. Entretanto, a adoção de medidas regulatórias de intervenção no ecossistema da internet com vistas a prevenir abuso de posição dominante de grandes plataformas e reduzir barreiras à entrada de novos players ainda carece de rigorosa fundamentação quanto a sua necessidade e eficácia. Mesmo na academia, não há ainda evidências empíricas contundentes sobre os prejuízos à inovação ou ao bem estar social advindos da estrutura concentrada de vários mercados digitais, como o de busca, o de lojas de aplicativos, ou mesmo o de mídias sociais. Tampouco, a definição de poder de mercado na economia digital encontrou consenso na academia ou mesmo entre governos. Dessa forma, enquanto esse debate avança, a atuação de agências antitruste com foco em corrigir/evitar condutas anti-competitivas na economia digital se coloca como a abordagem mais assertiva.

Um tema importante, cuja discussão será postergada a um próximo artigo, diz respeito ao arranjo institucional mais adequado à elaboração e enforcement de uma regulação de plataformas que seja ágil e flexível o suficiente para acompanhar a dinâmica desse setor, e que não gere desestímulo ao investimento em inovação. Por fim, outro tópico também importante, e ainda pouco debatido, se refere à necessidade de que medidas nacionais pró-competição em mercados digitais exijam cooperação internacional para serem eficazes, dada a natureza globalizada da economia digital.

Sobre o autor: Tiago Prado é especialista da Anatel, com atuação nas áreas de regulação e competição. Possui mestrado em políticas públicas e desenvolvimento pelo IPEA, MBA em gerenciamento de projetos pela FGV e bacharelado em engenharia de redes de comunicação pela UnB. Atualmente licenciado da Agência, cursa Ph.D. no Quello Center for Information and Media Policy da Michigan State University – EUA.

 

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