Esta semana, a superintendente de relações com o consumidor (SRC) da Anatel, Elisa Leonel, anunciou que está se desligando da superintendência e que deve se licenciar do serviço público por algum tempo. Simbolicamente, a mudança de comando da SRC é importante inclusive porque se trata de uma superintendência que até hoje só havia sido comandada por uma pessoa.
Servidora de carreira da Anatel desde 2005 e responsável pela superintendência há nove anos, Elisa foi a mais longeva superintendente da Anatel em uma mesma posição. A área desenvolvida por ela ganhou peso e passou a ocupar papel central nas questões da agência e foco permanente de interação com órgãos de defesa do consumidor, Ministério Público e Congresso, além, é claro, de ser a parte sempre mais visível da Anatel para a sociedade. Nesta entrevista, a agora ex-superintendente comenta como a área evoluiu dentro da agência, o papel da Anatel nas questões relacionadas ao consumidor e qualidade de serviços e os aspectos que ficam para a próxima gestão.
TELETIME – Você foi a primeira e única superintendente de relações com o consumidor da Anatel até aqui, então dá para dizer que foram 9 anos construindo uma área nova. Onde a superintendência se insere hoje na atuação da Anatel?
Elisa Leonel – Não é questão de onde se insere a SRC, mas sim o tema do consumidor. Esse talvez tenha sido o maior ganho. A Anatel teve finalmente uma área focada na satisfação dos consumidores e isso se inseriu na agenda da Anatel. Levar em conta a satisfação geral dos consumidores virou um objetivo estratégico, no plano estratégico da agência. A satisfação dos serviços prestados e índice de satisfação serão parte importante do selo que qualidade previsto no RQUAL (Regulamento Geral de Qualidade). A questão do consumidor está em todas as análises de impacto regulatório e estamos conversando frequentemente com os órgãos de defesa do consumidor e eles são ouvidos e contribuem com os processos regulatórios. Em resumo, essa cultura de proteção dos consumidores e discutir a qualidade dos serviços é talvez o maior ganho da superintendência.
2) Nos últimos anos, apesar de o senso comum muitas vezes qualificar os serviços de telecom como ruins, o que vemos é um processo permanente de melhora dos indicadores de reclamação e qualidade. A que se deve esse movimento?
São vários fatores que explicam a melhoria dos indicadores, fatores internos e externos à atuação da Anatel. De maneira geral, eu diria que as empresas estão mais preocupadas com o cenário competitivo em que elas estão inseridas e isso leva naturalmente a uma preocupação de garantias de qualidade. Há novas ferramentas tecnológicas que também facilitam isso e contribuem para a qualidade dos serviços prestados. Mas olhando para a questão regulatória, eu diria que essa nova cultura de levar o consumidor em consideração contribuiu muito. Cito o exemplo do Regulamento Geral de Direitos do Consumidor (RGC) que trouxe uma melhor regulação dos serviços. Também melhoramos na capacidade de fazer uma análise baseada em evidências, o que traz uma atuação na relação com os consumidores que se materializa e se reflete nessa atuação. A regulamentação responsiva que a Anatel vem se empenhando em adotar, especificamente aqui na superintendência inclusive, têm impacto direto nos temas objeto de fiscalização regulatória e quedas de reclamações associadas. E também é importante mencionar a implementação de ouvidorias pelas empresas. É com satisfação ver como elas abraçaram esse modelo, e isso também se reflete em quedas de reclamações e efetividade no atendimento. Esse trabalho com as ouvidorias foi objeto de dois prêmios internacionais que recebemos, inclusive.
3) A regulação de relações com os usuários sempre foi uma área de muitos atritos, com forte demanda de Ministério Público, Procons, Congresso… e ao mesmo tempo grande complexidade operacional e econômica para as operadoras. Como é possível conciliar esses dois pólos, muitas vezes antagônicos?
A nossa visão é que esses não deveriam ser temas antagônicos. As melhorias de processos evitariam os conflitos. Esse aparente antagonismo é causado muitas vezes pela dificuldade de se dialogar com os órgãos de defesa do consumidor. As empresas sempre tiveram muita dificuldade nesse diálogo e a Anatel, como regulador, buscou estabelecer esse diálogo e explicar a lógica da regulação responsiva, da causa raiz, da resolução de problemas no atacado e não em casos específicos, e isso melhorou em muito o relacionamento dos autores, com aumento no grau de confiança. A atuação regulatória da Anatel possibilitou o diálogo das próprias empresas com o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, com o fortalecimento dos conselhos de usuários e hoje muitas entidade participam desse diálogo, o que promove uma confiança e acaba com esse falso antagonismo entre melhoria de processos e diálogo com o sistema.
4) Também é a única área em que houve um esforço de autorregulação setorial, com o SART. Como avalia essa experiência? Acredita que é possível uma regulação de consumo menos intervencionista e mais responsiva?
É preciso reconhecer que essa não é a única estratégia de autorregulação, mas por ter impacto nos consumidores esses casos acabam sendo os mais conhecidos mesmo. Na nossa visão a autorregulação com a implantação do SART é um primeiro passo, que ainda precisa ser muito fortalecido e precisa de evoluções. É natural que ele ainda não esteja plenamente implementado, porque existe uma mudança de percurso, é uma mudança enorme. Mas a autorregulação só vai funcionar quando as questões relacionadas ao consumidor estiverem no centro dos processos de governança corporativa. A estratégia de autorregulação precisa dialogar com as estratégias e políticas internas adotadas pelas companhias, do contrário vamos ver efetividade e sustentabilidade das iniciativas e resultados alcançados, que são relevantes e precisam ser reconhecidos.
5) Você acredita que será possível pensar em um ambiente de relacionamento entre operadores e consumidores que seja totalmente digital, como querem as empresas?
Elas precisam simplificar os produtos e ser mais transparentes na oferta. Não podem agir como se o consumidor estivesse sempre errado e elas sempre certas. É muito fácil jogar a culpa no consumidor. Mais do que uma questão de canais, o que pesa hoje é a postura. Melhorando a postura e tendo interesse em resolver, não importa o canal com o consumidor.
6) Como as assimetrias regulatórias, seja entre teles e empresas de Internet, seja entre operadoras com poder de mercado significativo e PPPs, impactou o trabalho da superintendência na sua experiência?
No caso das PPPs, só vemos resultados positivos pela ótica da regulação de consumo. Basta ver os índices de satisfação das PPPs que são sempre melhores do que os das grandes. E o desenvolvimento dessas empresas só foi viável pelas estratégias de assimetria regulatória adotada pela Anatel. As bases estão crescendo e dentro dessa lógica de maior qualidade percebida, o que é excelente. Já no caso das assimetrias com as empresas de Internet, eu inverto um pouco a lógica: a questão é a postura das empresas de Internet versus a postura das empresas de telecomunicações. Os planos, pacotes, das empresas de Internet são sempre mais simples e intuitivos, fazendo com que o consumidor nem tenha a necessidade de demandar canais de atendimento tradicionais. Se o setor de telecom de fato quiser investir em uma regulação mais leve na questão dos consumidores, precisará investir em modelos de negócio mais leves.
7) Depois de nove anos, o que considera como legado positivo e onde avalia que a superintendência deixou a desejar?
Vamos começar pelos pontos positivos. A Anatel teve muitas conquistas na relação com os consumidores. A primeira é a centralidade na agência da questão dos consumidores e qualidade do serviço, que estão em todas as agendas, como eu já disse. Há um outro positivo que é o fato de termos desenvolvido uma equipe especialista na temática consumerista, em comportamento do consumidor. A gente tem usado técnicas de ciência comportamental, nossa capacidade de regular baseados em evidências tem avançado muito, conseguimos fazer diagnósticos e estudos baseados em teorias e metodologias consagradas. Outra questão positiva foi a simplicidade dos canais de atendimento, e o fortalecimento do diálogo com os parceiros. Isso tudo tem gerado frutos. E tem a regulação responsiva, que foi objeto de uma aposta institucional da Anatel que nós abraçamos e tivemos resultados concretos em temas que historicamente eram muito conflituosos e doloridos para o consumidor. Com isso avançávamos em temas pelos quais o setor era cobrado e a Anatel também.
Como desafio e reflexão eu acho que o que falta é as prestadoras incorporarem de vez a questão dos consumidores na governança corporativa. O capital das empresas tem sido avaliado pelos compromissos éticos, de sustentabilidade e de combate à corrupção. Mas precisamos refletir também porque o consumidor não entrou de uma vez por todas e de forma efetiva e pensada nos fatores de avaliação de governança da agenda ESG. Esse é um desafio que cabe também à Anatel acompanhar.