Pilar do Marco Civil, neutralidade ainda não foi testada no Brasil

No aniversário de cinco anos da  Lei nº 12.965/2014, o Marco Civil da Internet, um dos pontos mais ressaltados por especialistas foi o da neutralidade de rede. A questão ganhou grande repercussão nesse período, notadamente devido às idas e vindas da regulação da agência norte-americana, a Federal Communications Commission (FCC), a respeito do assunto. No Brasil, o assunto acabou sendo amplamente debatido, mas não necessariamente teve impacto prático juridicamente. Pelo menos até o momento, uma vez que a chegada de novas tecnologias como o 5G pode reacender o debate.

Na visão do diretor do ITS Rio e professor da UERJ, Carlos Affonso, o debate sobre neutralidade de rede ainda está aceso e polarizado, mas na prática ainda não houve grandes consequências. "Dos três pilares do Marco Civil, a neutralidade é o que menos foi provocado judicialmente", diz. Segundo o acadêmico, houve "uma ou outra ação que questionou, mas existe ainda um 'potencial a ser explorado' em neutralidade. Ainda não vimos usuários finais questionando situações de suspeita de degradação clara de aplicação". Affonso lembra que o decreto que regulamentou o MCI traz o conceito de neutralidade de forma mais detalhada, mas ainda principiológica. A opinião dele é que isso deveria ser mantido desta forma, uma vez que o conceito se adequaria a diferentes realidades, sem destacar componentes econômicos.

O sócio do escritório FAS Advogados e consultor jurídico do MEF, Rafael Pellon, entende que a neutralidade foi adotada pelo Judiciário, e que isso é um saldo positivo. "Ao longo dos últimos cinco anos tivemos uma série de pontos controversos que passaram a ser respeitados. A gente não teve grandes problemas no Judiciário, mas tivemos um reconhecimento institucional de que é necessário ter a Lei e que ela funciona", declarou.

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Esse aspecto principiológico do Marco Civil é um dos fatores que diferencia o aspecto da neutralidade no Brasil em relação aos Estados Unidos, na opinião do conselheiro do notório saber do Comitê Gestor da Internet (CGI.br), Demi Getschko. "A gente tem a vantagem de ter uma lei, e não um regulamento sobre o tema. Nos EUA, a avaliação [do conceito de neutralidade] conforme a posição política do governo varia bastante. No Brasil, é claro que uma lei pode ser trocada ou mexida, mas é muito mais complicado", explica. Para ele, a neutralidade está "embutida nos padrões da Internet", e que isso significa que não se deve haver bloqueios ou lugares inacessíveis na rede. "Existem tensões de segurança, uso ruim e alguém tenta resolver essas questões [com projetos que alteram a redação], mas acho que o MCI segue firme e forte. Não vejo motivo para mexer."

Futuro

Mas já há discussões sobre possíveis necessidades de alterações no Marco Civil, sobretudo em relação à chegada de novas tecnologias. Um dos casos mais emblemáticos é o do fatiamento de rede (network slicing), necessário para reduzir a latência em serviços para a futura rede móvel de quinta geração (5G). Argumenta-se que, do jeito que está, o dispositivo sobre neutralidade de rede no Marco Civil poderia dificultar isso. A representante do 3º setor no CGI.br, Flávia Lefèvre, discorda. "Não impede a regulamentação para questões específicas. Não acho necessariamente que o artigo 9 do MCI e o artigo 5 do decreto sejam empecilho para o desenvolvimento do 5G. Vai demandar regulação específica, mas isso deve respeitar os princípios", afirma. 

"Separar esse pedaço [pelo slicing] é priorizar? Se eu considerar que hoje temos 100% de disponibilidade da rede, e amanhã só vai ter 80% para reservar 20% para alguém, isso pode ser problema sim com neutralidade sim. Mas hoje ninguém tem 100% da rede disponível", argumenta Rafael Pellon. Para ele, a discussão será sobre qual a porcentagem mínima para considerar a rede completamente disponível, e quanto as teles vão disponibilizar para os parceiros. "Considerando uma manutenção dos parâmetros de qualidade, o network slicing seria apenas a separação de redes, e não a priorização ou subtração. Mas isso terá que ser melhor definido", argumenta. 

Não será o único elemento técnico a demandar uma mudança, mas Pellon ressalta que, até o momento, ainda não houve nada de concreto. "Existem no Congresso mais de cem projetos para alterar. Nenhum deles está andando, mas existem. O grande resumo que a gente pode fazer é que, depois que foi aprovado, todo mundo tentou alterar [o Marco Civil] e ele não foi alterado. Se fosse uma lei ruim, já teria sido alterada. Não existe uma necessidade urgente."

Zero-rating e franquia

Um aspecto relacionado à neutralidade de rede continua sendo questionado, na opinião de Flávia Lefèvre: a discriminação do tráfego por aplicativo quando a franquia termina na banda larga móvel. Ainda assim, a presença do conceito no Marco Civil é festejada. "Se não tivéssemos a garantia do MCI da neutralidade de rede, é muito provável que a Internet tivesse se tornado em uma espécie de TV por assinatura neste momento", declara. "Ainda que tenhamos desrespeito ao código de não interrupção de serviço e não discriminação de pacotes, o que acontece de forma clara na rede móvel, a situação da neutralidade poderia ser pior se não fosse o art. 9 e o decreto que regulamentou o MCI." Ela também entende que o saldo é positivo, uma vez que "as operadoras também não estão absolutamente felizes com isso, pois gostariam que o MCI tivesse garantido outras possibilidades comerciais". 

As práticas do mercado acabaram tornando o zero-rating mais usuais, segundo Carlos Affonso. "O zero-rating foi questionado judicialmente algumas vezes, mas nada que tivesse decisão em larga escala ou que chegasse no Supremo [Tribunal Federal]. Não houve debate nacional sobre o tema e o mercado o tornou rotina", opina. Vale lembrar que em 2017, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) arquivou o inquérito administrativo aberto contra a Claro, Oi, TIM e Vivo pelo uso do zero-rating, após denúncias do Ministério Público Federal. 

Polêmica semelhante atingiu a banda larga fixa. Para Affonso, os argumentos contra as franquias de dados que citam o art.7 ao falar da não suspensão do acesso não seriam adequados. "O MCI desempenha esse papel, mas não por este artigo. Ele fortalece uma linguagem da Internet como essencial para a cidadania e garante uma série de direitos", diz. De toda a forma, a franquia na rede fixa ainda é um calo para a Anatel, que mantém em vigor uma liminar de 2016 proibindo a prática. E, até onde se sabe, o governo não tem previsão para que o assunto volte à pauta

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