Cinco milhões de kits de TV digital depois, as lições do modelo de switch-off

No começo deste mês, a Seja Digital, empresa encarregada de fazer a distribuição dos kits de digitalização da TV analógica para a população carente cadastrada no Bolsa Família e em outros programas sociais do governo, chegou à considerável marca de 5 milhões de kits distribuídos e instalados. Quase tudo foi distribuído este ano, e a expectativa é que até o final de 2017 sejam 7 milhões de kits entregues ao todo, número similar ao esperado para 2018. Ao longo deste processo, algumas lições importantes já puderam ser aprendidas.
O saldo positivo não se dá só pelo número de kits distribuídos, mas pelo fato de que nas cidades em que o sinal analógico de TV é desligado, praticamente 100% da população passou a receber sinal de TV digital, o que significa que o processo não gerou um gap tecnológico, pelo menos não em percentuais estatisticamente relevantes. Mesmo a cidade de São Paulo, onde poucos apostavam ser possível o desligamento do sinal, não há mais TV analógica, e o Rio, com todas as suas dificuldades, caminha para ter o mesmo cenário ao final de outubro. O desligamento em Salvador e Fortaleza, por sua realidade sócio-econômica complexas, também foram marcos importantes.
Foi necessário ao longo do processo fazer alguns ajustes de cronograma dentro do que havia sido originalmente desenhado, e o resultado desse ajuste é que apenas nas 1,3 mil cidades em que é de fato fundamental a limpeza da faixa de 700 MHz a digitalização será total. Nas demais, a TV analógica continuará existindo e conviverá com aquelas emissoras que queiram migrar para a nova tecnologia. A obrigação de digitalização total e switch-off em todo o país está estabelecida para 2023 apenas, mas sem a pressão para a liberação do espectro para a banda larga móvel, nada garante que estas cidades, que representam pouco mais de 30% da população, um dia serão 100% digitais.

Notícias relacionadas

Modelo de implantação

A principal lição observada no processo até agora é que é possível implementar uma política pública a partir de um fundo de recursos oriundos da iniciativa privada (mas que serviram como parte de pagamento de um leilão de espectro) e com uma gestão independente do Estado. Um embrião desse modelo já havia sido realizado com a ABRTelecom, responsável pela gestão da portabilidade e agora pela verificação dos parâmetros de qualidade da banda larga, mas a Seja Digital (nome fantasia da EAD – Empresa Administradora da Digitalização) levou a iniciativa a um outro patamar, seja pelo tamanho do desafio de distribuir 15 milhões de kits à população carente, o orçamento de R$ 3,6 bilhões ou ao pouco tempo para concluir a digitalização (pouco mais de três anos de trabalho). Parece estar funcionando bem, mesmo que com atritos pontuais, a sintonia entre o Gired (grupo gestor da digitalização), por meio do qual o poder público (Anatel e MCTIC) atua no processo, e as empresas de TV e telecomunicações envolvidas, bem como o trabalho dos comitês de acompanhamento e da atuação da Seja Digital. A EAD, mesmo sendo "controlada" pelas empresas de telecomunicações, tem um foco muito específico de trabalho, que é distribuir os kits e informar a população sobre o processo de digitalização, e essa simplicidade na proposta (ainda que de execução complexa) tem contribuído para os resultados. A Seja Digital não se tornou um braço de venda de produtos de telecom, não executa outras políticas públicas, não desenvolve negócios para as operadoras nem é pautada pela agenda governamental, e isso dá o foco necessário ao trabalho.
Outro elemento surpreendente do processo é a colaboração das emissoras de TV, que se um dia resistiram à ideia de entregar a faixa de 700 MHz para seus novos ocupantes (as teles), hoje mostram-se empenhadas em estimular o processo de digitalização. O tempo dedicado ao tema nos telejornais de maneira expontânea e o envolvimento em campanhas organizadas pelas próprias emissoras ou coordenadas com as teles é uma grata surpresa.

Caixa-preta

Mas há lições importantes a serem aprendidas até aqui. Uma delas ficou evidente com a necessidade de adiar o desligamento em Sobral e Juazeiro do Norte (Ceará). Ficou claro que a TV aberta, fora do circuito das grandes redes de TV e grandes centros, tem imensas dificuldades de se digitalizar, seja pela falta de recursos financeiros, adequação técnico-jurídica ou mesmo interesse estratégico. Nas duas cidades do interior cearense, o que aconteceu foi uma soma desses fatores. Isso demonstra como o mercado de radiodifusão, regulado apenas cartorialmente nas últimas décadas, é uma caixa preta para o Poder Público, e a regulação setorial não tem poder nenhum de mandar fazer ou ajustar as falhas de mercado. Uma das graves falhas identificadas no processo é a deficiência de cobertura da TV aberta, o que força boa parte da população a recorrer à parabólica ou TV paga via satélite para ter seus serviços. Outro problema é que em muitos municípios a retransmissão dos sinais de TV depende exclusivamente de prefeituras, que hoje não têm condição de investir para manter o serviço, quanto mais digitalizá-lo.
Outra lição do processo é sobre a importância da TV aberta, sobretudo para a população mais carente. A atuação da Seja Digital se dá, essencialmente, da mesma forma como os diferentes programas sociais atuam, por meio dos agentes comunitários, prefeituras, ONGs e instituições religiosas. E os relatos colhidos até aqui são de que a população mais carente percebe na TV aberta um valor equivalente ao que se dá a serviços públicos como saúde, escola, recolocação profissional ou benefícios sociais. Por ser a única forma de entretenimento e informação da maior parte da população, o esforço de digitalização tem sido muito efetivo.
Do ponto de vista técnico, houve alguns aprendizados. No que diz respeito à interferência, os temores de que o sinal LTE interferiria na recepção dos sinais de TV, até aqui, não se concretizaram. Também ficou evidente que o interesse das pessoas pelos recursos de interatividade, no modelo atual, é nulo. O índice de uso dos recursos disponíveis nas caixas medido pelas pesquisas até aqui é próximo de traço. Não se sabe se o resultado teria sido outro com uma caixa mais sofisticada, ou com canal de retorno. Mas o fato é que o benefício percebido pelos usuários é, efetivamente, a melhoria da qualidade do sinal.
A EAD ainda tem muitos desafios complicados pela frente, mas parece ter encontrado um caminho que efetivamente levará à digitalização dos lares brasileiros na questão da recepção de TV, pelo menos nas cidades em que a sua intervenção para a liberação do espectro é necessária. As emissoras também perceberam que a digitalização tem benefícios, como a economia de energia e qualidade de som e imagem, e um aumento de satisfação dos espectadores. Para não falar na convivência pacífica com as teles, que se mostrou possível mesmo com interesses originalmente tão antagônicos. Faltam ainda nove milhões de kits a serem distribuídos e muitas cidades importantes passarem pelo desligamento para atestar o sucesso do modelo, mas o caminho é promissor.

5 COMENTÁRIOS

  1. Excelente explanação sobre a situação atual; bom saber que pelos valores envolvidos, o serviço tem saído a contento e sem "enrolação".

  2. Muito bom! O grande desafio é os 30% restante, onde a solução é a Parabólica Digital. Ainda bem que Globo, com SatHD e Starone (C2 e D2) já enxergaram isso. Será nosso Brasil integrado e 100 % Digital.

  3. O trabalho foi bem planejado, foram superados todos os obstáculos e o resultado está aí. Parabéns ao Brasil e aos brasileiros que trabalharam sério nessa empreitada. Excelente matéria.

  4. Excelente matéria. Falta explicar beabaticamente por que é preciso desligar o sinal analógico em prol do digital. Muitas pessoas não entendem essa necessidade e tendem a achar que é mera manobra comercial.

  5. Há que se discutir melhor a respeito do suposto desinteresse (ou interesse nulo) da população pela interatividade na TV Digital. Afinal, nada é divulgado a respeito da possibilidade de uso desse recurso nas caixas conversoras, o que leva ao desconhecimento dos usuários. Pelo menos é o que percebo nas coberturas jornalísticas das emissoras de TV aqui do Espírito Santo.

    O discurso é um só: qualidade de som e imagem. Zero informação sobre interatividade. Outra crítica a ser feita é acerca da forma da divulgação feita pelas emissoras. Tratam a digitalização como um benefício concedido por elas à população, o que não é verdade. Isso é fruto de uma política pública nascida mais de dez anos atrás.

    No final das contas, muita propaganda (até certo ponto enganosa ou exagerada) e informação pela metade.

Deixe um comentário para Lúcia Cancelar resposta

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui
Captcha verification failed!
CAPTCHA user score failed. Please contact us!