TV digital: uma decisão apressada que pode manchar um processo exitoso

Decisões de governo apressadas e tomadas sem o mínimo de cuidado técnico podem gerar prejuízos bilionários ao cidadão, que em última instância é o dono de qualquer recursos público. Exemplos disso estão todos os dias no noticiário político, econômico e policial. Hoje o Ministério de Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) pode ter dado um passo inexplicável neste sentido, sem a menor necessidade, ao definir, por meio da Portaria 3.045, de 7 de junho de 2018, que  os saldos dos recursos administrados pela Empresa Administradora da Digitalização (EAD) sejam aplicados na  "distribuição de Conversores de TV Digital Terrestre com interatividade e com desempenho otimizado, ou com filtro 700 MHz, às famílias que já não os tenham recebido, para assegurar que toda a população tenha acesso livre, gratuito e de alta qualidade ao sinal digital, nas cidades onde o desligamento ocorrerá até 31 de dezembro de 2023".

Estamos falando de algumas centenas de milhões de reais, algo na casa dos R$ 600 milhões, segundo as primeiras estimativas do Gired (grupo que acompanha o processo de digitalização). Recursos que não estarão disponíveis, e nem sequer inteiramente calculados, antes de meados de 2019. Portanto,  a pergunta que deve ser feita ao ministério é: esta é a melhor opção agora? Quais os estudos que mostram ser esta a melhor aplicação dos recursos? Por que definir isso com tanta pressa?

Ninguém questiona a relevância da radiodifusão aberta e gratuita, nem a importância de que toda a população brasileira possa continuar recebendo os sinais de TV. Mas considerando o horizonte de tempo até 2023, a situação de penúria do próprio mercado de radiodifusão, que em muitas cidades sequer consegue manter a existência de mais de uma emissora, e considerando que a cada ano 10 milhões de televisores são naturalmente substituídos por aparelhos mais modernos, que recebem o sinal de TV digital, faz sentido esta política?

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Estas e outras perguntas seriam feitas, e possivelmente respondidas, pelo grupo de trabalho criado na semana passada pelo Gired justamente para pensar a aplicação destes recursos. Participariam do grupo os radiodifusores, as empresas de telecomunicações, a Anatel e o MCTIC. Com a decisão política tomada nesta sexta, atropelou-se a discussão técnica, que nem havia sido iniciada. Lembrando que o edital de venda dos 700 MHz, ao mesmo tempo em que dá guarida à continuidade da distribuição de kits, também prevê que o Gired poderia indicar projetos alternativos, a serem definidos pelo Conselho Diretor da agência.

A forma como saiu a portaria deixa muitas dúvidas: que municípios serão contemplados? Quais serão as famílias beneficiadas? Qual o critério de priorização (já que os recursos são finitos)? Basta lembrar que depois do desligamento do sinal analógico, grandes centros metropolitanos chegaram a percentuais de praticamente 100% de digitalização, como São Paulo ou Brasília. Como será montada a logística de distribuição em todo o Brasil? Serão mantidas as campanhas de mobilização da Seja Digital? Os modelos de kits serão os mesmos?

O processo de digitalização da TV aberta, decorrente da limpeza da faixa de 700 MHz, que será utilizada pelas empresas de telecomunicações para banda larga 4G, é a única política pública do governo na área de comunicações que tem dado resultados concretos. Todas as cidades estão conseguindo fazer o desligamento razoavelmente dentro do planejado, com nenhum tipo de desconforto para a população, imensos benefícios sociais, melhoria na qualidade do serviço de radiodifusão e até mesmo aumento da audiência para os radiodifusores. Trata-se de um caso exemplar cujas ressalvas são mínimas na comparação com os resultados alcançados. E a grande virtude do processo é que ele tem passado longe de interferências políticas desnecessárias. Até mesmo radiodifusores e empresas de telecomunicações que, pensava-se, ficariam em guerra do início ao fim do processo, têm trabalhado de maneira cooperada e harmônica.

É, portanto uma experiência no geral muito exitosa até aqui, mas que também teve alguns erros na sua origem, acarretando algumas centenas de milhões de reais inutilizados. Erros estes que deveriam servir de exemplo agora, para que não se repetissem. O maior deles foi a inclusão da interatividade nos equipamentos sem que houvesse, paralelamente, uma política pública efetiva atrelada a este recurso, de forma a estimular o desenvolvimento e uso das aplicações. As primeiras pesquisas feitas pela EAD mostraram níveis irrisórios de utilização do recurso interativo por parte de quem recebeu os kits. E, de lá para cá, mesmo as poucas aplicações que haviam sido disponibilizadas, ainda de maneira rudimentar, pelo governo, foram desativadas. Ou seja, o recurso da interatividade está na caixa, encarece o custo do equipamento, mas o telespectador não o utiliza para absolutamente nada.

As razões para este fracasso são várias. Uma delas é que a interatividade foi uma boa ideia que surgiu na hora errada. Em 2006, quando o governo estabeleceu a política de TV digital (Decreto 5.820/06) a realidade tecnológica era uma. No ano seguinte, a comunicação interpessoal sofreu uma grande guinada com o advento dos smartphones, que alteraram completamente a forma como as pessoas passaram a utilizar a Internet e interagirem entre si e com conteúdos em rede. Some-se o fato de que o Ginga não recebeu nenhum tipo de impulso mais efetivo além de esforços pontuais da EBC e de algumas universidades, e que o próprio mercado de televisão comercial (amplamente dominante na radiodifusão brasileira) não viu na interatividade um produto comercialmente interessante, o resultado foi uma boa ideia que não vingou. A questão é: esse fracasso já poderia ter sido antevisto quando se escreveu o edital da faixa de 700 MHz prevendo a inclusão do recurso de interatividade? Não houve nenhum estudo aprofundado sobre isso na ocasião, e o resultado foram centenas de milhões em  recursos públicos que foram e continuam sendo gastos para algo que não serve para nada. Situação que pode estar se repetindo agora.

Não se pode negar que a decisão do MCTIC anunciada nesta nesta sexta, dia 8, de vincular a sobra de recursos à continuidade do programa de distribuição de kits, traz um mérito que é a preocupação de dar uma oportunidade ao cidadão de baixa renda das cidades que não estão contempladas pelo processo de desligamento até 2018 de ter acesso ao mesmo benefício. Essa era a preocupação dos radiodifusores ao pedirem em março, como antecipou este noticiário, uma definição sobre a questão.

Mas entre tantas questões colocadas aqui, fica uma especialmente problemática: o edital de licitação da faixa de 700 MHz prevê que se os recursos da EAD não forem suficientes para a distribuição de um kit para cada família cadastrada no Bolsa Família e mitigação das interferências, as teles que ganharam o leilão (Claro, TIM, Vivo e Algar) teriam, em tese, que fazer novo aporte financeiro para a entidade, além dos R$ 3,6 bilhões já aportados. Acontece que desde que o processo de desligamento começou, o critério de alocação de recursos foi reduzido em alcance (anteriormente seria em todas as cidades brasileiras) mas passou a contemplar todo o Cadastro Único, e não apenas Bolsa Família, nas cidades em que realmente a limpeza de faixa de 700 MHz era necessária. Como as contas não estão feitas (ou não são públicas) e não se conhece os respectivos estudos de impacto regulatório, não se sabe se estes recursos adicionais serão necessários, justamente em um momento em que as teles se planejam para a expansão da rede de banda larga móvel 4G e a chegada do 5G. Ou seja, além de apressada, a determinação do ministério cria uma imensa insegurança jurídica para o igualmente relevante processo de ampliação da banda larga móvel. Nada justifica, portanto, a pressa do ministério na decisão. É até possível que se concluísse, ao final, que o caminho deveria ser este mesmo. Mas seria possível caminhar com mais segurança.

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