Modelos Institucionais: a Ancine vai mesmo acabar?

Desde os primeiros movimentos de redesenho do governo federal sob o presidente eleito Jair Bolsonaro, com forte orientação à redução da máquina administrativa, são fortes os rumores de uma eventual extinção da Ancine.

Notícias dão conta da fusão da Antt, Antaq e Anac sob uma nova Agência Nacional dos Transportes. Rumores também apontam para novos arranjos para as demais Agências: ANA, ANM, ANP e Aneel, estão no espectro de recursos naturais/energéticos. Anvisa e ANS, no campo dos serviços de saúde.

No setor de Comunicações, os rumores mais citados indicam que a parte de Regulação da Ancine seria absorvida pela Anatel e a parte de Fomento, poderia ser destinada a órgãos tais como o BNDES (que recentemente extinguiu a sua Diretoria de Cultura) ou outros órgãos afetos ao investimento tais como Fundeb, ou mesmo o novo Ministério da Cidadania, etc.

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Sobre uma eventual extinção da Ancine, relatos internos que vêm de lá dão conta de que o presidente da Agência promete que nada vai mudar; enquanto de parte da Anatel, o presidente Leonardo Euler admite a hipótese de recepcionar parte das atribuições da Ancine, mas aponta dificuldades e faz uma ponderação (ver aqui). Dentre as dificuldades apontadas por ele "questões administrativas, de carreira, mandatos de conselheiros" são levantadas. Já a ponderação vai no ponto crucial: as "condições em que isso se dará". De fato o modelo é fundamental para viabilizar essa ideia, e esse modelo, ao meu ver, pode passar também pela parte de Fomento. E aqui o raciocínio se inverte e tanto a pergunta quanto a resposta seriam melhor endereçadas pelo outro lado, o da Ancine.

Explico a seguir.

A primeira coisa a se considerar é que dificilmente uma mera extinção da Ancine se revelaria viável, pois acarretaria problemas legais de difícil transposição, o que no mínimo tornaria o processo de extinção longo e custoso. Mas caberia sim, sem grandes problemas, uma transformação da Agência.

Quando o presidente da Anatel Leonardo Euler, em parte concordando com a análise de Samuel Possebon no Teletime (ver aqui) aborda as dificuldades da absorção pela Anatel das responsabilidades da Ancine, me parece que ambos não levaram em conta a possibilidade de que a Anatel herdaria também pelo menos parte do quadro funcional da Ancine, que por sua vez injetaria na Anatel a bagagem e a expertise de quem lida com o setor de conteúdo audiovisual desde pelo menos o ano de 2001, quando a Ancine foi criada. A conjunção de ambos os perfis (servidores da Anatel + servidores da Ancine) traria sinergias e evoluções bem-vindas para a regulação de um setor de comunicações cada vez mais convergente.

Do ponto de vista legal, a junção das carreiras das duas agências seria bastante simples, ambas são regidas pela mesma Lei 10.871/2004. Na área fim: o cargo de Especialista em Regulação (Nível Superior), da Anatel está no art.1º, inc. I, e da Ancine no art. 1º, inc. II; e o de Técnico em Regulação (Nível Médio), da Anatel no art.1º, inc. X e da Ancine no art. 1º, inc. XI. Na área meio, Analista Administrativo (Nível Superior) e Técnico Administrativo (Nível Médio), já são cargos unificados, respectivamente incs. XVII e XVIII do art. 1º. Feita a emenda legal, não restaria muito mais do que a unificação dos procedimentos burocráticos relativos à Progressão, Promoção, Licenças, etc.

Sobre as Diretorias vale frisar que são 5 membros na Anatel e 4 na Ancine. Na Anatel vence um mandato a cada ano, sempre no dia 4 de novembro, os Conselheiros assumem seus assentos para cumprir o restante do mandato, ou seja, usualmente cerca de pouco menos do que 5 anos completos. Já na Ancine não há necessariamente alternância, pois a praxe é que cada Diretor seja nomeado para um mandato de 4 anos completos, de maneira personalíssima, ou seja, enquanto um cargo de Diretor estiver vago o prazo do mandato não corre, sendo que atualmente o próximo mandato vence em 1° de Outubro de 2019. A seguir, somente em 20 de Outubro de 2021 ocorrerá o término de mais dois mandatos ao mesmo tempo. Para se evitar questionamentos legais, é possível remediar a situação e, por exemplo, determinar a extinção do(s) próximo(s) cargo(s) de Diretor/Conselheiro a vencer até que o número ideal do novo Conselho Diretor seja atingido.

Uma só Agência Reguladora das Comunicações é de fato o arranjo institucional mais frequente ao redor do globo, só para citar algumas temos a FCC, nos EUA, o Ofcom, no Reino Unido, a Agcom, na Itália e a Anacom, em Portugal, dentre tantas outras.

Pois bem, para abrir o debate, segue uma reflexão inicial sobre o que poderia resultar dessa nova Agência Reguladora das Comunicações brasileira.

REGULAÇÃO

A parte de regulação apresenta diversas sinergias visíveis de pronto, mais notadamente no que tange ao SeAC (TV Paga), hoje fatiado entre as duas Agências de forma por vezes não muito clara. Mas há também oportunidades no que tange à Radiodifusão, à Programação e agora à internet de maneira ampla, com destaque para os serviços de vídeo.

Todo esse segmento poderia ser absorvido pela atual Anatel, com o reforço de servidores oriundos da atual Ancine.

Vale frisar que há ainda a regulação do setor Cinematográfico propriamente dito, regulações tais como a Cota de Tela e a supervisão do funcionamento da distribuição e exibição de filmes precisariam ser endereçadas.

FOMENTO

A Ancine, durante a sua história, desenvolveu muito mais a parte de Fomento do que a de Regulação, haja à vista o fato de somente a partir de 2011 a Lei 12.485 ter outorgado de maneira clara a regulação de parte do setor de TV Paga à Ancine.

Com a devida ressalva a todas as pertinentes críticas à ineficiência burocrática da Ancine, é fato que lá foi desenvolvido uma expertise sobre Aprovação e Acompanhamento de Projetos, Liberação de Recursos e Prestação de Contas que inexiste na Anatel e que precisaria existir.

A Anatel, por diversas razões, fracassou em destinar os recursos do Fundo para a Universalização dos Serviços de Telecomunicações, o FUST, mas a sociedade continua carente desse tipo de investimento, só que agora de forma diferente. A telefonia fixa perdeu importância, mas os novos serviços de Telecom, especialmente a Banda Larga, continuam sendo alavanca fundamental para o desenvolvimento econômico do Brasil.

Nesse sentido, a atual Ancine poderia recepcionar servidores da atual Anatel e fazer girar o Fomento geral do setor de Comunicações expandido. É praxe no mundo inteiro que o fechamento do "gap" de investimento para áreas com baixo interesse econômico seja complementado com investimento público através das taxas pagas pelo próprio setor ou com recursos diretos dos tesouros. No Brasil, as taxas multibilionárias existem e são regularmente recolhidas pelas empresas do setor, o que ainda falta é a execução da segunda metade do plano.

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Por outro lado, estabelecer um distanciamento físico entre a área de Fomento (que poderia ficar no Rio de Janeiro) e a áreas de Regulação e Fiscalização (que poderiam ficar no Distrito Federal) vem ao encontro das melhores práticas. Da mesma maneira, uma separação entre Regulação e Fiscalização também poderia ser benéfica. Aqui vale ainda contemplar algum tipo de separação temática entre as duas diretorias atuais na fase de transição, há experiências internacionais bem sucedidas com esse tipo de solução.

ADMINISTRAÇÃO INTERNA

Como dito anteriormente, a fusão das áreas de Administração Interna traria ganhos de escala e escopo. Facilitada pela união das carreiras-meio na mesma Lei, também não seria uma tarefa das mais difíceis fazer a fusão dos diversos contratos administrativos (serviços de TI, serviços gerais, etc), das áreas meio e seus procedimentos (RH, TI, Financeiro, etc). Com a ressalva de que seria necessário manter uma estrutura razoável para atendimento direto à unidade de Fomento no Rio de Janeiro, a tendência seria de que a Anatel, mais institucionalizada e desenvolvida, praticamente absorvesse a Ancine.

Estes são somente alguns dos primeiros pensamentos e esclarecimentos sobre essa eventual fusão que poderiam ser mais profundamente debatidos. Um debate amplo, sério e maduro é sempre benéfico. Há algumas ameaças, mas as oportunidades também estão claras.

(* – O autor é Especialista em Regulação da Anatel desde 2005 e durante os últimos 8 anos ocupou diversas posições na Ancine. Suas opiniões não necessariamente refletem a posição desta publicação)

7 COMENTÁRIOS

    • Outra coisa que ninguém entende é o por quê dessa agência censurar a tv paga (sim, vocês censuram a tv paga obrigando que tenha 'cota'). Deixe a tv paga seguir seu caminho, e fique só no tal de cinema nacional.

    • Vemos aqui um exemplo onde a estupidez fez morada. "Passar a faca" na agência nacional do cinema é cortar o desenvolvimento econômico e social que a mesma promove. Para aqueles que estão revoltados, eu lhes digo que o audiovisual foi uum dos únicos setores a crescerem mesmo na crise. Gera emprego e renda e seu mercado é maior que a industria farmaceutica. Essa excitação contra a Ancine é o reino da estupidez, mercado de TV paga deve ser regulado para obviamente haverem regras. É chato explicar o óbvio, mas é função de uma agência atuar nas distorções de forma a equilibrar o mercado.
      Cotas são a forma de assegurar a produção de conteúdo nacional de forma a fazer NOSSA econômia girar. Nesses momentos é que vemos quem é nacionalista de goela/"patriota". Cotas existem em toda Europa e nos EUA (talvez informando que existe nos EUA fique mais aceitável para alguns…).
      A junção das agências é prejudicial por que o lobby que controla a Anatel não se interessa em promover o mercado audiovisual.

  1. Daniel, perfeito na sua análise. O problema maior que vamos enfrentar nesse 'novo' governo é justamente o reino da ignorância que assola as cabeças. Pede apenas para essa pessoa aí ler os créditos de umà produção audiovisual e perceber a quantidade de empregos diretos que ela gera.

  2. Também concordo, Daniel! Não há mesmo espaço aberto para diálogo dentro das mentes estúpidas e fanáticas. Vamos ver o que nos aguarda, ainda, entre outras peripécias desse "novo" governo, sendo que uma das pérolas foi, no seu terceiro dia após empossado, o presidente dizer que estudaria acabar com a Justiça do Trabalho; agora, corta verba da Ancine, e também quer, quase à base de pancada, aprovar uma reforma da previdência que prejudicará, como sempre, os mais necessitados.

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